LEITURA E INTERPRETAÇÃO
1. (Enem
2012) TEXTO I
Antigamente
Antigamente, os pirralhos dobravam a
língua diante dos pais e se um se esquecia de arear os dentes antes de cair nos
braços de Morfeu, era capaz de entrar no couro. Não devia também se esquecer de
lavar os pés, sem tugir nem mugir. Nada de bater na cacunda do padrinho, nem de
debicar os mais velhos, pois levava tunda. Ainda cedinho, aguava as plantas, ia
ao corte e logo voltava aos penates. Não ficava mangando na rua nem escapulia
do mestre, mesmo que não entendesse patavina da instrução moral e cívica. O
verdadeiro smart calçava botina de botões para comparecer todo liró ao copo
d’água, se bem que no convescote apenas lambiscasse, para evitar flatos. Os
bilontras é que eram um precipício, jogando com pau de dois bicos, pelo que
carecia muita cautela e caldo de galinha. O melhor era pôr as barbas de molho
diante de um treteiro de topete, depois de fintar e engambelar os coiós, e antes
que se pudesse tudo em pratos limpos, ele abria o arco.
ANDRADE, C. D. Poesia e prosa.
Rio de janeiro: nova Aguilar, 1983 (fragmento).
TEXTO II
Palavras do arco da velha
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Expressão
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Significado
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Cair nos braços de Morfeu
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Dormir
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Debicar
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Zombar, ridicularizar
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Tunda
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Surra
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Mangar
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Escarnecer, caçoar
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Tugir
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Murmurar
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Liró
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Bem-vestido
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Copo d’água
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Lanche oferecido pelos amigos
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Convescote
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Piquenique
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Bilontra
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Velhaco
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Treteiro de topete
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Tratante atrevido
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Abrir o arco
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Fugir
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FLORIN, J. L. As línguas mudam. In:
Revista Língua Portuguesa, n. 24, out. 2007 (adaptado).
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Na leitura do fragmento do
texto Antigamente constata-se, pelo emprego de palavras
obsoletas, que itens lexicais outrora produtivos não mais o são no português
brasileiro atual. Esse fenômeno revela que
a) a língua
portuguesa de antigamente carecia de termos para se referir a fatos e coisas do
cotidiano.
b) o português
brasileiro se constitui evitando a ampliação do léxico proveniente do português
europeu.
c) a
heterogeneidade do português leva a uma estabilidade do seu léxico no eixo
temporal.
d) o português
brasileiro apoia-se no léxico inglês para ser reconhecido como língua
independente.
e) o léxico do
português representa uma realidade linguística variável e diversificada.
2. (Enem
2012) Aquele bêbado
— Juro nunca mais beber — e fez o
sinal da cruz com os indicadores. Acrescentou: — Álcool.
O mais, ele achou que podia beber.
Bebia paisagens, músicas de Tom Jobim, versos de Mário Quintana. Tomou um pileque
de Segall. Nos fins de semana embebedava-se de Índia Reclinada, de Celso
Antônio.
— Curou-se 100% de vício — comentavam
os amigos.
Só ele sabia que andava bêbado que
nem um gambá. Morreu de etilismo abstrato, no meio de uma carraspana de pôr do
sol no Leblon, e seu féretro ostentava inúmeras coroas de ex-alcoólatras
anônimos.
ANDRADE, C. D. Contos
plausíveis. Rio de Janeiro: Record, 1991.
A causa mortis do
personagem, expressa no último parágrafo, adquire um efeito irônico no texto
porque, ao longo da narrativa, ocorre uma
a) metaforização
do sentido literal do verbo “beber”.
b) aproximação
exagerada da estética abstracionista.
c) apresentação
gradativa da coloquialidade da linguagem.
d) exploração
hiperbólica da expressão “inúmeras coroas”.
e) citação
aleatória de nomes de diferentes artistas.
3. (Enem
2012) Labaredas nas trevas
Fragmentos do diário secreto de
Teodor Konrad Nalecz Korzeniowski
20 DE JULHO [1912]
Peter Sumerville pede-me que escreva
um artigo sobre Crane. Envio-lhe uma carta: “Acredite-me, prezado senhor,
nenhum jornal ou revista se interessaria por qualquer coisa que eu, ou outra
pessoa, escrevesse sobre Stephen Crane. Ririam da sugestão. [...] Dificilmente
encontro alguém, agora, que saiba quem é Stephen Crane ou lembre-se de algo
dele. Para os jovens escritores que estão surgindo ele simplesmente não
existe”.
20 DE DEZEMBRO [1919]
Muito peixe foi embrulhado pelas
folhas de jornal. Sou reconhecido como o maior escritor vivo da língua inglesa.
Já se passaram dezenove anos desde que Crane morreu, mas eu não o esqueço. E
parece que outros também não. The London Mercury resolveu
celebrar os vinte e cinco anos de publicação de um livro que, segundo eles, foi
“um fenômeno hoje esquecido” e me pediram um artigo.
FONSECA, R. Romance negro e
outras histórias. São Paulo: Companhia das Letras, 1992 (fragmentado).
Na construção de textos literários,
os autores recorrem com frequência a expressões metafóricas. Ao empregar o
enunciado metafórico “Muito peixe foi embrulhado pelas folhas de jornal”,
pretendeu-se estabelecer, entre dois fragmentos do texto em questão, uma
relação semântica de
a) Causalidade,
segundo a qual se relacionam as partes de um texto, em que uma contém a causa e
a outra, a consequência.
b) Temporalidade,
segundo a qual se articulam as partes de um texto, situando no tempo o que é
relatado nas partes em questão.
c) Condicionalidade,
segundo a qual se combinam duas partes de um texto, em que uma resulta ou
depende de circunstâncias apresentadas à outra.
d) Adversidade,
segundo a qual se articulam duas partes de um texto em que uma apresenta uma
orientação argumentativa distinta e oposta à outra.
e) Finalidade,
segundo a qual se articulam duas partes de um texto em que uma apresenta o meio,
por exemplo, para uma ação e a outra, o desfecho da mesma.
4. (Enem
2012) Cabeludinho
Quando a Vó me recebeu nas férias,
ela me apresentou aos amigos: Este é meu neto. Ele foi estudar no Rio e voltou
de ateu. Ela disse que eu voltei de ateu. Aquela preposição deslocada me
fantasiava de ateu. Como quem dissesse no Carnaval: aquele menino está
fantasiado de palhaço. Minha avó entendia de regências verbais. Ela falava de
sério. Mas todo-mundo riu. Porque aquela preposição deslocada podia fazer de
uma informação um chiste. E fez. E mais: eu acho que buscar a beleza nas
palavras é uma solenidade de amor. E pode ser instrumento de rir. De outra
feita, no meio da pelada um menino gritou: Disilimina esse, Cabeludinho. Eu não
disilimei ninguém. Mas aquele verbo novo trouxe um perfume de poesia a nossa
quadra. Aprendi nessas férias a brincar de palavras mais do que trabalhar com
elas. Comecei a não gostar de palavra engavetada. Aquela que não pode mudar de
lugar. Aprendi a gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que pelo que
elas informam. Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade: Ai morena, não
me escreve / que eu não sei a ler. Aquele a preposto ao verbo ler, ao meu
ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro.
BARROS, M. Memórias
inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003.
No texto, o autor desenvolve uma
reflexão sobre diferentes possibilidades de uso da língua e sobre os sentidos
que esses usos podem produzir, a exemplo das expressões “voltou de ateu”,
“desilimina esse” e “eu não sei a ler”. Com essa reflexão, o autor destaca
a) os desvios
linguísticos cometidos pelos personagens do texto.
b) a
importância de certos fenômenos gramaticais para o conhecimento da língua
portuguesa.
c) a distinção
clara entre a norma culta e as outras variedades
linguísticas.
d) o relato
fiel de episódios vividos por Cabeludinho durante as suas
férias.
e) a
valorização da dimensão lúdica e poética presente nos usos coloquiais da
linguagem.
5. (Enem
2012) Leia.
O senhor
Carta a uma jovem que,
estando em uma roda em que dava aos presentes o tratamento de você, se dirigiu
ao autor chamando-o “o senhor”:
Senhora:
Aquele a quem
chamastes senhor aqui está, de peito magoado e cara triste, para vos dizer que
senhor ele não é, de nada, nem de ninguém.
Bem o sabeis, por
certo, que a única nobreza do plebeu está em não querer esconder sua condição,
e esta nobreza tenho eu. Assim, se entre tantos senhores ricos e nobres a quem
chamáveis você escolhestes a mim para tratar de senhor, e bem de ver que só
poderíeis ter encontrado essa senhoria nas rugas de minha testa e na prata de
meus cabelos. Senhor de muitos anos, eis aí; o território onde eu mando é no
país do tempo que foi. Essa palavra “senhor”, no meio de uma frase, ergueu
entre nós um muro frio e triste.
Vi o muro e calei:
não é de muito, eu juro, que me acontece essa tristeza; mas também não era a
vez primeira.
BRAGA, R. A borboleta
amarela. Rio de Janeiro: Record, 1991.
A escolha do tratamento que se queira
atribuir a alguém geralmente considera as situações específicas de uso social.
A violação desse princípio causou um mal-estar no autor da carta. O trecho que
descreve essa violação é:
a) “Essa
palavra, ‘senhor’, no meio de uma frase ergueu entre nós um muro frio e
triste”.
b) “A única nobreza
do plebeu está em não querer esconder a sua condição”.
c) “Só
poderíeis ter encontrado essa senhoria nas rugas de minha
testa”.
d) “O
território onde eu mando é no país do tempo que foi”.
e) “Não é de
muito, eu juro, que acontece essa tristeza; mas também não era a vez
primeira”.
6. (Enem
2012) E como manejava bem os cordéis de seus títeres, ou ele mesmo,
títere voluntário e consciente, como entregava o braço, as pernas, a cabeça, o
tronco, como se desfazia de suas articulações e de seus reflexos quando achava
nisso conveniência. Também ele soubera apoderar-se dessa arte, mais artifício,
toda feita de sutilezas e grosserias, de expectativa e oportunidade, de insônia
e submissão, de silêncios e rompantes, de anulação e prepotência. Conhecia a
palavra exata para o momento preciso, a frase picante ou obscena no ambiente
adequado, o tom humilde diante do superior útil, o grosseiro diante do
inferior, o arrogante quando o poderoso em nada o podia prejudicar. Sabia
desfazer situações equivocadas, e armar intrigas das quais se saía sempre bem,
e sabia, por experiência própria, que a fortuna se ganha com uma frase, num
dado momento, que este momento único, irrecuperável, irreversível, exige um
estado de alerta para sua apropriação.
RAWET, S. O aprendizado. In: Diálogo.
Rio de janeiro: GRD, 1963 (fragmentado).
No conto, o autor retrata
criticamente a habilidade do personagem no manejo de discursos diferentes
segundos a posição do interlocutor na sociedade. A crítica à conduta do
personagem está centrada
a) Na imagem
do títere ou fantoche em que o personagem acaba por se transformar, acreditando
dominar os jogos de poder na linguagem.
b) Na alusão à
falta de articulações e reflexos do personagem, dando a entender que ele não
possui o manejo dos jogos discursivos em todas as situações.
c) No
comentário, feito em tom de censura pelo autor, sobre as frases obscenas que o
personagem emite em determinados ambientes sociais.
d) Nas
expressões que mostram tons opostos nos discursos empregados aleatoriamente
pelo personagem em conversas com interlocutores variados.
e) No falso
elogio à originalidade atribuída a esse personagem, responsável por seu sucesso
no aprendizado das regras de linguagem da sociedade.
7. (Enem
2012) Desde dezoito anos que o tal patriotismo lhe absorvia e por
ele fizera a tolice de estudar inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram
grandes? Pois que fossem... Em que lhe contribuía para a felicidade saber o
nome dos heróis do Brasil? Em nada... O importante é que ele tivesse sido
feliz. Foi? Não. Lembrou-se das coisas do tupi, do folk-lore, das
suas tentativas agrícolas... Restava disso tudo em sua alma uma satisfação?
Nenhuma! Nenhuma!
O tupi encontrou a incredulidade
geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura. Uma decepção. E a
agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ela não era fácil como diziam
os livros. Outra decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o
que achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele a viu
combater como feras? Pois não a via matar prisioneiros, inúmeros? Outra
decepção. A sua vida era uma decepção, uma série, melhor, um encadeamento de
decepções.
A pátria que quisera ter era um mito;
um fantasma criado por ele no silêncio de seu gabinete.
BARRETO, L. Triste fim de
Policarpo Quaresma. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br. Acesso em: 8
nov. 2011.
O romance Triste fim de
Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, foi publicado em 1911. No fragmento
destacado, a reação do personagem aos desdobramentos de suas iniciativas
patrióticas evidencia que
a) A dedicação
de Policarpo Quaresma ao conhecimento da natureza brasileira levou-o a estudar
inutilidades, mas possibilitou-lhe uma visão mais ampla do
país.
b) A
curiosidade em relação aos heróis da pátria levou-o ao ideal de prosperidade e
democracia que o personagem encontra no contexto republicano.
c) A
construção de uma pátria a partir de elementos míticos, como a cordialidade do
povo, a riqueza do solo e a pureza linguística, conduz à frustração
ideológica.
d) A propensão
do brasileiro ao riso, ao escárnio, justifica a reação de decepção e
desistência de Policarpo Quaresma, que prefere resguardar-se em seu
gabinete.
e) A certeza
da fertilidade da terra e da produção agrícola incondicional faz parte de um
projeto ideológico salvacionista, tal como foi difundido na época do
autor.
8. (Enem 2012) Ai, palavras, ai,
palavras
Que estranha potência a vossa!
Todo o sentido da vida
Principia a vossa porta:
O mel do amor cristaliza
Seu perfume em vossa rosa;
Sois o sonho e sois a audácia,
Calúnia, fúria, derrota...
A liberdade das almas,
ai! Com letras se elabora...
e dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil, como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...
MEIRELES, C. Obra poética.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985 (fragmento).
O fragmento destacado foi transcrito
do Romanceiro da Independência, de Cecília Meireles. Centralizada
no episódio histórico da Inconfidência Mineira, a obra, no entanto, elabora uma
reflexão mais ampla sobre a seguinte relação entre o homem e a linguagem:
a) A força e a
resistência humanas superam os danos provocados pelo poder corrosivo das
palavras.
b) As relações humanas, em
suas múltiplas esferas, têm seu equilíbrio vinculado aos significado das
palavras.
c) O significado dos
nomes não expressa de forma justa e completa a grandeza da luta do homem pela
vida.
d) Renovando o
significado das palavras, o tempo permite às gerações perpetuar seus valores e
suas crenças.
e) Como produto da
criatividade humana, a linguagem tem seu alcance limitado pelas intenções e
gestos.