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Leia o texto a seguir.
Os livros como paixão[1]
“Ladrão de livros de 85 anos é proibido de
entrar em bibliotecas da Califórnia. Folha Online, 14 nov. 2002
Ninguém
compreende minha paixão por livros, suspirava ele. E era uma grande paixão: o
pequeno apartamento em que vivia estava literalmente atulhado de romances, livros
de contos, obras de autoajuda, textos médicos, até. Não que ele os lesse. Ler
era secundário. O importante era possuir os livros, saber que toda aquela
riqueza cultural do passado estava ali, ao alcance de sua mão. A mão que
acariciava as lombadas, que folheava amorosamente as páginas.
O problema é que livros custam dinheiro. E
dinheiro lhe faltava. Aos 85 anos, vivendo de uma modesta aposentadoria, o
ancião não podia dispender muito em livrarias. Por isso roubava. “Roubo”,
aliás, era uma expressão que lhe desagradava; preferia falar em algo como
“redistribuição da riqueza intelectual”. Mas o eufemismo não o ajudava muito.
Nem as mãos trêmulas, nem a lentidão.
Cada vez que ia roubar um livro, deixava cair
uma pilha inteira no chão. Mais do que isso, não sabia disfarçar: os
bibliotecários sabiam quando ele estava roubando. Pediam-lhe as obras furtadas
de volta e, justiça seja feita, ele nunca se negou a fazê-lo. Era parte de um
jogo, um jogo que ele adorava, e cujas regras sempre respeitou.
Infelizmente, porém, os bibliotecários
cansaram deste jogo. E um acordo entre eles resultou em uma decisão: o homem
agora está proibido de entrar nas bibliotecas. Não adianta ele dizer que quer
apenas consultar jornais. Não adianta, também, dispor-se a ser revistado. A
paciência dos responsáveis simplesmente terminou.
Resta-lhe refugiar-se em seu sonho. E que
sonho é este? Ele sonha que um dia vai ganhar muito dinheiro — num cassino, ou
numa loteria. E aí comprará uma grande e antiga biblioteca — que será só dele.
Ninguém mais poderá frequentá-la. Só ele. Ali irá todos os dias.
Para roubar livros, claro. E os
bibliotecários, seus empregados, não poderão dizer nada. Mais: terão de fingir
que não percebem o furto. E ele roubará o que quiser.
Belo sonho,
consolador sonho. O único inimigo deste sonho é o tempo. Com 85 anos, quanto
mais ele poderá esperar pelo cassino ou pela loteria? O tempo é um grande e
implacável ladrão. E não tem nenhuma paixão por livros.
O escritor Moacyr Scliar escrevia às
segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens
publicadas no jornal.”
SCLIAR, Moacyr. In Folha
de S. Paulo, São Paulo, 25 nov. 2002.
1. Como você observou, o escritor
Moacyr Scliar baseou-se em um fato cotidiano para escrever seu texto. O que há
de inusitado na notícia em que ele se inspirou?
a) Qual parte do texto é
fictícia e qual é real?
2. A paixão que o velho senhor
sentia pelos livros era incomum. Explique por quê.
3. Para esse senhor, “ler era
secundário”, embora em geral o importante na aquisição de um livro seja o
prazer da leitura. Como se pode compreender o apego dele aos livros?
4. O velho senhor não lia os
livros, mas sabia que eles guardavam uma grande riqueza cultural. Que valor os
livros têm em sua vida? De que modo você usufrui do convívio com eles?
5. O protagonista ou personagem principal
dessa narrativa era um senhor norte-americano, já de idade avançada, que estava
“vivendo de uma modesta aposentadoria”.
a) Como vivem os aposentados no Brasil? Exponha sua opinião.
6. Interprete este trecho:
“...preferia falar em algo como ‘redistribuição da riqueza intelectual’”.
7. Além de ser considerado um
“implacável ladrão”, o tempo é acusado de não ter “nenhuma paixão por livros”.
Por quê?
8. No texto, o narrador é
observador ou personagem? Justifique sua resposta.
9. Quanto à linguagem do texto,
pode-se dizer que a narrativa é impessoal e objetiva ou pessoal e subjetiva?
Por quê?
10. Essa narrativa apresenta
características de um texto jornalístico ou literário?
11. Como ocorre nas crônicas em
geral, nesse caso o narrador emprega verbos no presente e no pretérito e usa a
variedade padrão da língua, num registro informal. Explique qual é o objetivo
da crônica.
O texto lido é
uma crônica, ou seja, uma narrativa
condensada que focaliza um flagrante da vida, pitoresco e atual, real ou
imaginário, com ampla variedade temática. Normalmente veiculada em jornais ou
revistas, a crônica está na fronteira entre texto literário e não literário.
Sua linguagem costuma ser subjetiva e coloquial, e sua ação, rápida e
sintética. Seus personagens, se comparados com os do conto, têm menor densidade
e características psicológicas mais superficiais. Embora predominem as sequências
narrativas, a crônica também pode apresentar trechos dissertativos.
Inspirada em um
fato real, a crônica de Moacyr Scliar apresenta as características típicas do
gênero, além de misturar humor à crítica social. Vemos uma linguagem fluente,
coloquial, e um enredo rápido e simples.
Esteja a
crônica voltada para o âmbito jornalístico ou apresente caráter literário, ela
costuma surpreender pelo desprendimento com que são tratados os fatos, em geral
relacionados ao cotidiano, a temas atuais. Dentre nossos melhores cronistas,
temos: Luis Fernando Veríssimo, Affonso Romano de Sant’Anna, Fernando Sabino,
Lourenço Diaféria, Rubem Braga, Moacyr Scliar, Carlos Drummond de Andrade,
Rachel de Queiroz, Cecília Meireles e muitos outros.
Características da Crônica:
|
Ø Geralmente
é publicada em jornais e revistas;
Ø Relata
de forma artística e pessoal fatos colhidos no noticiário jornalístico e no
cotidiano; Texto curto e breve;
Ø Tem
por objetivos: divertir ou fazer refletir criticamente sobre a vida e os
comportamentos humanos;
Ø Pode apresentar elementos básicos da
narrativa: fatos, personagens, tempo e lugar; O tempo e o espaço são limitados;
Ø Pode
apresentar narrador-observador ou narrador-personagem;
Ø Linguagem
geralmente de acordo com o padrão culto formal ou culto informal da língua.
http://www.youtube.com/watch?v=jQVvKZQ9jOo&feature=related
(nesse vídeo estão sendo entrevistados dois importantes cronistas brasileiros: Luiz Fernando Veríssimo e Moacyr Scliar. )
[1] Texto
retirado do livro: Oficina de redação de Leila Lauar Sarmento.
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